Politica
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SP PARA TODOS – GOVERNO DE SÃO PAULO
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A LUTA ENTRE RAZÃO E EMOÇÃO GAUDÊNCIO TORQUATO
O mote da década de 50 acompanhou por muitos anos a vida dos consumidores: “vale quanto pesa”. O símbolo da balança, estampado na embalagem, não apenas garantia a legitimidade do “sabonete das famílias”, mas reforçava o conceito de verdade. O consumidor constataria não haver um grama de peso a mais ou a menos. Era a época da “verdade verdadeira”. De lá para cá, a verdade passou a perder substantivos e a ganhar superlativos, dando vazão ao bordão desses tempos virtuais: “vale muito mais do que pesa”.
Essa versão embala anúncios de propaganda, expressões sobre pessoas, políticos, jogadores de futebol, entre outros.
A observação cai bem no momento em que a política no Brasil começa a rejeitar os velhos paradigmas. Nesse ano eleitoral, o superlativo dominará a expressão política, a verdade se cobrirá com as cores da ficção, sob a capa de fake news, e o mundo real dividirá suas cores com o mundo virtual. A passarela entre esses dois universos será pavimentada por três tipos de argamassa: a razão, a emoção e a polarização.
O cenário da razão deixa ver, na linha de frente, eleitores conscientes, autônomos, exigentes, que já não agem ao estilo que o vulgo costumava recitar em ditos politicamente incorretos: “Maria vai com as outras”.
O campo da razão disputará o processo decisório com o espaço da emoção. Basta medir a temperatura do meio ambiente ou ver o desfile de adjetivos nas redes sociais, onde o palavrório bolsonarista é confrontado pelo verbo oposicionista, expandindo a polarização.
Indignação, revolta, ódio se amalgamam nas bandas que dividem a sociedade: os adeptos, eleitores e simpatizantes do presidente Jair; os oposicionistas de partidos de oposição e contingentes que não leem pela cartilha da direita-radical-conservadora; e os centristas, que olham para os lados e para cima, à procura de novos protagonistas.
Bolsonaro, de um lado, e Lula, de outro, são os dois líderes do cabo de guerra. A linguagem de ambos é embalada por camadas de celofane emotivo. O presidente usa a saída do Palácio da Alvorada para puxar a corrente; o ex-presidente usa palcos de eventos do PT ou de organizações. Ambos se esforçam para antecipar a campanha, com desfecho em outubro, usando metralhadoras expressivas para agregar parceiros das bandas, tentando encantar as turbas. O perfil populista de ambos emerge na exposição de uma semântica desarrumada e uma estética destemperada.
Ora, quando falta água na fonte da razão, os dois correm para beber na fonte da emoção. O ritual é conhecido. Com uma linguagem coloquial, os dois transmitem mensagem subliminar, querendo dizer: “somos gente como vocês”. Metáforas aparecem aos montes. E assim a liturgia emotiva acaba construindo um suporte de simpatia.
Mas a movimentação social no Brasil, nos últimos tempos, mostra que a razão, como mecanismo para a tomada de decisões, amplia laços, inclusive nos setores populares, tradicionalmente conhecidos por agir sob emoção. Os comportamentos racionais estão relacionados a um cenário de modernidade, que aponta para um reordenamento de valores, princípios e visões dos grupamentos sociais.
Dito isto, é o caso de perguntar: que vetor terá mais influência em campanhas? Atente-se para o ethos nacional, cuja composição agrega valores como cordialidade, improvisação, exagero, paixão, solidariedade. O resultado aparece na “alma caliente” dos trópicos, em contraposição à frieza anglo-saxã. Em nossas plagas, a emoção ganha da razão.
Mas se expande a cada ciclo político. Por quê? Por causa de mudanças no campo individual. A pessoa, escondida no anonimato na massa, descobre que pode se transformar em cidadã. A cidadania deixa de ser bandeira de instituições e ingressa no repertório mental do indivíduo, passando a ser meta desejada. Ou seja, amplia-se a “consciência do EU” em contraponto ao conceito do “NÓS”, esteira da propaganda política.
Maior autonomia fortalece o desenvolvimento de uma autogestão técnica, pela qual os indivíduos passam a traçar rumos e a selecionar os meios, recursos e formas para atingir seu intento. Rejeitam ou aceitam, com restrições, pressões do poder normativo. Equivale a dizer que fogem dos “currais” psicológicos que enclausuram pensamentos.
Em suma, o campo social alarga o universo do discurso, a rebeldia das formas e provoca a rejeição a tudo que se assemelhe a totalizações. Classes sociais e categorias profissionais, usando suas tubas de ressonância, desfraldam bandeiras de defesa. Se muitos segmentos ainda votam com a emoção, outros buscam apoio nos pilares da razão: o voto sai do coração para subir à cabeça.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato
Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org
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Porandubas Políticas – Por Gaudêncio Torquato – 08/01/2020
Abro a primeira coluna do ano com Cabralzinho.
Cabralzinho, líder estudantil em Campina Grande, foi passear em Sobral, no Ceará. Chegou em dia de comício. No palanque, longos cabelos brancos ao vento, o deputado Crisanto Moreira da Rocha, competente orador da província:
– Ladrões!
A praça, apinhada de gente, levou o maior susto.
– Ladrões! Ladrões, porque vocês roubaram meu coração!
Cabralzinho voltou para Campina Grande, candidatou-se a vereador. No primeiro comício, lembrou-se de Sobral e do golpe de oratória do deputado, fechou a cara, olhou para os ouvintes com ar furioso:
– Ladrões!
Ninguém se mexeu. Cabralzinho sabia que política em Campina Grande era briga de foice no escuro. Queria o impacto total.
– Cambada de ladrões!
Foi uma loucura. A multidão avançou sobre o palanque. Pedra, pau, sapatos. O rosto sangrando, acuado, Cabralzinho implorava:
– Espera que eu explico. Deixe eu terminar. Espera que eu explico.
Explicou. Ao médico, no hospital.
Projeção para 2020
Já dissemos nesta coluna que fazer previsão no Brasil é um exercício que requer muitos cuidados. Até porque nossa índole abarca alguns valores que prejudicam esforços de interpretação. Somos, por exemplo, uma gente que aprecia improvisar, inventar, mudar de posição. Nossa cultura política não se alimenta dos eixos que formam a identidade de populações de países com sólidas instituições. Os anglo-saxões, a título de comparação, respondem sim ou não diante de questões que exigem uma das duas opções. Nós preferimos o talvez. Sob essa condição, farei hoje uma tentativa de interpretar 2020, a partir da análise do comportamento de 13 protagonistas.
1. O Poder Executivo – o presidente
O presidente Jair Bolsonaro até será orientado a mudar de postura, aliviando suas declarações e ataques, como este último que fez à imprensa: “vocês, jornalistas, são uma raça em extinção. Ler jornais envenena”. Mas a índole de escorpião de Bolsonaro não permitirá mudanças. Continuará a “picar” adversários que encontre no meio do caminho. Daí a inferência: momentos de tensão continuarão a cercar os Palácios da Alvorada e do Planalto. A depender de quem seja o alvo (o Congresso, por exemplo), poderá haver retaliação.
2. O Poder Executivo – ministros e assessores
Há de distinguir ministros de perfil essencialmente técnico, com bom nível de desempenho, como o ministro da Infraestrutura, Tarcisio Gomes de Freitas, e ministros de perfil polêmico, como o da Educação, Abraham Weintraub. A elevação do deboche, se for o caso, expandirá as tensões, sendo bastante prováveis mudanças na Esplanada dos Ministérios. Alguns perdem muito tempo com a produção de falas polêmicas e que acabam impactando sua própria imagem. A tendência aponta para o arrefecimento dos conflitos e maior foco no trabalho. Ademais, o presidente deverá cobrar resultados.
3. O Poder Executivo – os militares
A ala do entorno presidencial, particularmente os generais, já foi mais forte no início do governo. O general Augusto Heleno, que responde pelo gabinete de Segurança Institucional da Presidência, parecia o perfil mais forte do entorno presidencial. Ostentava a flâmula de poder moderador. Hoje, alinha-se completamente à linguagem do presidente, inclusive nos ataques a certas figuras da imprensa. Militares que saíram passaram a ser críticos. Ou seja, transparece certa divisão na frente de apoios.
4. Congresso
Os parlamentares, já afeitos ao estilo rompante do presidente, cobrarão com mais força as demandas feitas junto ao articulador, ministro Luís Eduardo Ramos, e mesmo ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. O orçamento impositivo será, nesse sentido, uma ferramenta de pressão. O que está dentro do Orçamento terá de ser cumprido. Os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, mexerão no regimento para tentar se reeleger? Alcolumbre topa, Maia é mais precavido. Em caso de novos dirigentes, a perspectiva é de que estejam mais alinhados ao discurso de autonomia e independência do Parlamento. Tempos de valorizar os conjuntos parlamentares e evitar que o Judiciário invada a esfera parlamentar.
5. Poder Judiciário
Continuará sendo alvo da mídia e de parcela da esfera política, não conformada com suas decisões no âmbito da Lava Jato. Expande-se a sensação de que alguns ministros agem de maneira parcial e sob viés político. A substituição no final do ano do ministro Celso de Mello, decano do STF, abrirá o leque de especulações. Quem seria o perfil “terrivelmente evangélico” para entrar em seu lugar, conforme há tempos ao substituto se referiu o capitão presidente? O atual advogado-Geral da União, André Luiz Mendonça?
6. Mídia massiva
Os meios de comunicação deverão fazer cobranças mais duras do Executivo, ante a insistência do presidente Bolsonaro de fustigá-los. O teor crítico deverá se expandir não apenas no que concerne ao Poder Executivo, nas três instâncias da Federação, mas em relação aos Poderes Legislativo e Judiciário. O espírito eleitoral de 2020 abrirá os espaços de investigação da mídia, que deverá aumentar o teor de denúncias. O TSE será muito demandado. Partidos em formação farão pressão por seus interesses junto ao Tribunal Eleitoral.
7. Mídias sociais
Na arena das redes sociais, deverão acontecer batalhas sangrentas. De todos os lados, o embate será ferrenho, com denúncias, fake news, especulações, pesquisas encomendadas, processos acusatórios. As lutas deverão ser travadas no campo Federal, com aliados e simpatizantes de Bolsonaro e adversários; no campo estadual, onde se repetirá o destampatório; e na área municipal, onde as contendas locais ganharão um tom Federal. As mídias sociais puxarão para os municípios os cenários desenhados no plano Federal.
8. O povo
Difícil inferir sobre o comportamento do povo, pela complexidade do conceito. Afinal, povo abarca as massas carentes e periféricas, que habitam na base da pirâmide; os setores médios, incluindo o expressivo contingente de profissionais liberais, as camadas e níveis gerenciais do comércio e da indústria, pequenos e médios proprietários e outros segmentos de vulto. Os setores médios farão o papel de pedra jogada no meio do lago: as marolas formadas correrão até as margens. O fato é que as massas das margens avançam em suas posturas, não mais sendo engolfadas pela mistificação política. O voto sai do coração para subir à cabeça. Por isso mesmo, é forte a possibilidade de vermos o povo, em suas diversas roupagens, engrossando as mobilizações de rua. Sinal de tempos de democracia participativa.
9. Igrejas, credos
Nos últimos tempos, as igrejas e credos religiosos têm frequentado com mais disposição os palcos e espaços da política. Há igrejas evangélicas, como a Universal do Reino de Deus, que explicita publicamente seu interesse na política. Até um bispo da IURD, Marcelo Crivella, dirige uma importante prefeitura, a do Rio de Janeiro. E há quem aponte nela interesse maior: eleger um dos seus para governar o país. Os católicos, por sua vez, estão de olho nesse processo. Por tudo isso, pode-se aferir que os credos agirão como cabos eleitorais. O Estado laico, aos poucos, cede espaço ao Estado religioso.
10. As organizações sociais
Um dos mais significativos fenômenos da atualidade brasileira é a organicidade social. Dando as costas aos políticos, que não têm dado respostas satisfatórias às suas demandas, cidadãos e cidadãs recolhem-se em entidades intermediárias – associações, sindicatos, federações, grupos, núcleos, movimentos. Há cerca de 500 mil ONGs formais no Brasil e outro tanto de entidades informais. O povo vê essas entidades como a ferramenta para abrir portas e oferecer resultados. Esse imenso arquipélago tende a movimentar as ruas e praças. E a servir de suporte de candidaturas nesse ano eleitoral.
11. Os partidos políticos
São 33 os partidos políticos em condições de operar no Brasil. E há mais 70 em estágio de organização. Servem, hoje, apenas como abrigo formal de candidatos. Cedem a legenda para candidatos e os grandes partidos ajudarão alguns nomes com recursos do Fundo Partidário, que deve ser de R$ 2 bilhões. A meta de algumas siglas é fazer uma grande floresta de prefeitos. PT, PSL, MDB, PSDB, DEM, PPB, PP, PTB, Solidariedade, Cidadania, Podemos, PSOL estão no rol dos mais competitivos.
12. Governadores
Os governadores agirão, este ano, como os maiores cabos eleitorais. Afinal, a eleição municipal é o campo de decolagem do pleito de 2022. Daí a meta de eleger um grande número de prefeitos. Ocorre que os Estados estão de cofres vazios. Alguns em situação pré-falimentar. Mas o esforço dos governadores deve incluir uma bacia de promessas. Muitos desejarão se reeleger em 2022. Não se pode esquecer que, por estas plagas, há muito respeito e consideração para quem tem o poder da caneta. Claro, caneta com muita tinta atrai mais apoios.
13. Prefeitos
Por último, a prefeitada. Este ano serão eleitos 5.570 prefeitos. Este será o maior exército de cabos eleitorais de 2022. Haja mão de obra. Prefeitos farão gigantesco esforço para se reeleger ou eleger um correligionário. As prefeituras estão praticamente quebradas, mas há sempre por parte do eleitor a expectativa de poder, de um dia ganhar um bom cargo ou bom “adjutório”. Quem apitou bem na orquestra formada em 2016 tem condições de continuar a ser maestro. Quem saiu do tom e não cumpriu suas promessas se candidata a receber um passaporte para suas casas.
Sucesso
Este consultor político deseja muito sucesso a todos os protagonistas alinhados nesta coluna.
Pequena ajuda
Notas para ajudar o planejamento de campanhas
Este consultor, ancorado em sua vivência, chama a atenção para o planejamento do marketing das campanhas, que abriga estas metas: 1) priorizar questões regionalizadas, localizadas, na esteira de um bairro a bairro, ou seja, fazer a micropolítica; 2) procurar criar um diferencial de imagem, elemento que será a espinha dorsal da candidatura, facilmente captável pelo sistema cognitivo do eleitor; 3) desenvolver uma agenda que seja capaz de proporcionar “onipresença” ao candidato (presença em todos os locais); 4) organizar uma agenda contemplando as áreas de maior densidade e, concentricamente, chegando às áreas de menor densidade eleitoral; 5) entender que eventos menores e multiplicados são mais decisivos que eventos gigantescos e escassos; 6) atentar para despojamento, simplicidade, agilidade, foco para o essencial, mobilidade, propostas fáceis de compreensão e factíveis. Esse é um resumido escopo de planejamento.
Marketing: os 5 eixos
Resgato, aqui, os cinco eixos do marketing eleitoral:1) pesquisa; 2) formação do discurso (propostas), 3) comunicação (bateria de meios impressos – jornalísticos e publicitários – e eletrônicos), mídias sociais; 4) articulação política e social e 5) mobilização (encontros, reuniões, passeatas, carreatas, etc.). A mobilização dá vida às campanhas. Energiza os espaços e ambientes. Já a articulação com as entidades organizadas e com os candidatos a vereador manterá os exércitos na vanguarda. A comunicação é a moldura da visibilidade. Principalmente em cidades médias e grandes. Sem ideias, programas, projetos, os eleitores rejeitarão a verborragia. E, para mapear as expectativas, anseios e vontade, urge pesquisar o sistema cognitivo do eleitorado.
Livro Porandubas Políticas
A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.
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CONSTRUINDO UMA GRANDE NAÇÃO GAUDÊNCIO TORQUATO
Artigo Gaudêncio Torquato l CONSTRUINDO UMA GRANDE NAÇÃO
Ilustremos uma reflexão com três historinhas, a primeira muito conhecida.
– Condenado à morte por corromper a juventude, Sócrates, o filósofo, recusou a oferta para fugir de Atenas sob o argumento de que seu compromisso com a polis não lhe permitia transgredir as regras. Os gregos cultivavam o respeito à lei.
– Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Mais tarde, executou os próprios filhos por conspirarem contra o novo regime. Pregava o poeta Horácio: “Doce e digno é morrer pela Pátria”.
– Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no Livro III sobre os discursos de Tito Lívio, deu comida aos pobres por ocasião de uma epidemia de fome e, por esse ato, foi executado por seus concidadãos. O argumento: pretendia tornar-se um tirano. Os romanos prezavam mais a liberdade do que o bem-estar social.
Desses relatos, emerge a pergunta: qual dos três personagens se sairia melhor caso o enredo ocorresse dentro do cenário da política contemporânea? Sem dúvida, o terceiro. Com uma diferença: o matreiro político não seria executado por alimentar a plebe, mas glorificado, mesmo escondendo por trás da distribuição de alimentos seu projeto de poder.
Essa é a hipótese mais provável, pelo menos em nossas plagas de tradição patrimonialista.
A moldura oferece uma leitura de dois mundos. O primeiro é regrado por princípios e valores, dentre os quais se destacam o compromisso com o bem comum, a obediência às leis, a defesa da moral e da ética. Esse escopo combina com a paradisíaca ilha da Utopia, que o inglês Thomas Morus descreveu: “uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm propriedade individual e absoluta”.
Esse Estado perfeito espelha a cidade divina em contraposição à cidade terrestre, esta afinada ao universo de Maquiavel, onde “os fins justificam os meios”. O florentino prega a noção de que o povo é dotado de razão, sendo capaz de decidir o seu destino. Sonha com a liberdade e, para conquistá-la, o príncipe deve usar os meios necessários. A lógica maquiavélica é: ideologias e valores morais devem ceder lugar aos instrumentos que podem garantir a hegemonia. Ou, na expressão de Weber, a ética da ação deve prevalecer sobre a ética da consciência.
O desenho ajuda a entender a quadra político-institucional que vivemos. Protagonistas da política, governantes, representantes e até juízes, lutam para fazer valer suas demandas. O resultado aparece na multiplicação de mazelas e velhos padrões da política.
Afinal, o que se faz necessário para que o Brasil, em 2020, comece a fortalecer seu conceito de Nação? Tentemos responder. O primeiro aspecto é: democratizar nossa democracia. Ou seja, dar vazão ao esforço para expandir a participação do povo no processo decisório, visando a aumentar a inclusão social, melhorar as condições do trabalho, proteger o meio ambiente, os direitos humanos e qualificar os serviços públicos, a partir das áreas da educação, saúde e segurança.
Urge incrementar nossa democracia participativa, convocando a sociedade para formação de um projeto nacional, evitando multiplicação de programas com foco em conveniências eleitoreiras. O Brasil clama por planos essenciais, integradores de necessidades sociais, culturais, geográficas e econômicas. No lugar de tijolos, paredes inteiriças.
E mais: a relação entre os Poderes há de ocorrer sob a égide da harmonia, respeito e autonomia, evitando tensões. Significa consolidar as funções do Parlamento, do Judiciário e do Executivo, dentro da norma constitucional, fazendo-os respeitar os espaços de cada um.
Impõe-se valorizar a meritocracia e atenuar a carga das indicações assentadas na vida partidária. Significa selecionar perfis adequados para as estruturas governativas. Aristóteles dá uma pista: “Quando diversos tocadores de flauta possuem mérito igual, não é aos mais nobres que as melhores flautas devem ser dadas, pois eles não as farão soar melhor; ao mais hábil é que deve ser dado o melhor instrumento”. Isso é mérito. É claro que demandas partidárias devem ser contempladas, mas com critério, respeitando-se o principio: partidos que ganham devem participar da administração.
Por último, a lembrança de que uma grande democracia repousa sobre uma base de direitos e deveres, de ordem e harmonia, de ética e moral.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato
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POLÍTICA É MISSÃO, NÃO PROFISSÃO GAUDÊNCIO TORQUATO .
A política não é um fim em si mesmo. Trata-se de um sistema-meio para administrar as necessidades do povo. Sendo assim, é uma missão, não uma profissão. Aristóteles ensina que o cidadão deve servir à polis, visando ao bem comum. Ao se afastar dessa meta, dá lugar à corrupção. Que acontece quando “quem governa se desvia do objetivo de atingir o bem comum, e passa a governar de acordo com seus interesses”, diz o filósofo.
Por conseguinte, a política não deve ser escada para promover pessoas nem meio para facilitar negócios. Como sistema, desenvolve a capacidade de responder aspirações, transformar expectativas em programas, coordenar comportamentos coletivos e recrutar para a vida pública quem deseja cumprir uma missão social.
Esse acervo é utópico? Pode ser, mas deve servir de inspiração aos políticos. Infelizmente, em nossa cultura, a política tem sido tratada por muitos como um bom negócio. Tradição que vem lá de trás. Quando d. João III, entre 1534 e 1536, criou e doou aos donatários 14 capitanias hereditárias, plantava a semente do patrimonialismo, a imbricação do público com o privado.
Os donatários recebiam a posse da terra, podiam transferi-la para os filhos, mas não vendê-la. Consideravam a capitania como uma possessão, sua propriedade. A res publica virou coisa privada.
Hoje, parcela dos nossos representantes considera espaços públicos ocupados por seus indicados como feudos, extensões de suas posses. É assim que a política se transforma em um dos maiores e melhores negócios da Federação. O caminho é este: primeiro, conquista-se o mandato; a seguir, a política transforma-se em instrumento de intermediação. Temos um amplo mercado em um território com 27 Estados (com o DF), com nichos, estruturas, cargos e posições em três esferas: federal, estadual e municipal.
O negócio da política mexe com cerca de 150 milhões de consumidores, que formam o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta uns bons trocados (o custo médio está hoje em torno de 12 a 15 reais por eleitor), a depender do cargo disputado: vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, governador, senador e presidente da República.
Para tanto, candidatos ricos bancam suas campanhas. A maior parte recebe recursos do fundo partidário ou doações. Para 2020, o fundo partidário deve ser em torno de R$ 2,5 bilhões, sendo que o PSL e o PT, os dois maiores partidos na Câmara, receberão as maiores fatias. O que se sabe é que numa campanha despende-se entre três a quatro vezes mais recursos do que a quantia apresentada aos Tribunais eleitorais. São poucos os que conseguem chegar ao Parlamento com somas pequenas.
Desse panorama, surge a pergunta: se a campanha política no Brasil é tão dispendiosa e se os candidatos gastam acima do que ganham, por que se empenham tanto em assumir a espinhosa e sacrificada missão de servir ao povo? Será que há muito desvio entre o espírito cívico de servir e o sentido prático de se servir?
É arriscado inferir sobre ações e comportamentos do nosso corpo político, até porque parcela do Congresso tem atuado de maneira nobre na defesa de seus representados. Sofre, injustamente, críticas por conta da corrupção cometida por alguns.
E onde brota a semente da corrupção? Vejamos. Nas cercanias da política há um costume conhecido como superfaturamento. Obras públicas, nas três malhas da administração (federal, estadual e municipal), geralmente acabam recebendo um “plus”, um dinheiro a mais. Parcelas dos recursos servem aos achacadores e vão para os cofres das campanhas, formando o círculo vicioso responsável pelo lamaçal. Hoje, esse lamaçal está sendo devassado pela Operação Lava Jato. Mas há sempre uma fresta por onde se desvia dinheiro. E isso ocorre porque nos postos chaves estão pessoas de confiança de políticos que as indicaram.
Portanto, há um PIB informal formado por recursos extraídos das malhas da administração nas três instâncias federativas. Sanguessugas predadoras escondem-se em parcela do corpo político para sugar as veias do Estado brasileiro.
Dinheiro e poder são as vigas da vida pública, mas começam a soçobrar nesse início de ciclo da ética e da transparência.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato
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